PEQUENAS OBSERVAÇÕES E PREOCUPAÇÕES DE UM ARQUITETO
Sem outras pretensões exceto mostrar algumas de minhas pequenas preocupações e observações ao longo dos anos na convivência familiar e a sua relação tangencial com a arquitetura, peço desde já desculpas pela forma um tanto particular deste texto.
Nasci no final da década de 1950 em uma pequena cidade do interior de São Paulo, na região noroeste do estado, Cafelândia, uma cidade de mais ou menos 17.000 habitantes, distribuídos entre a zona rural e a zona urbana em igual proporção.
Digo mais ou menos com relação ao número de habitantes porque ao longo desse período e apesar de alguma flutuação, pouco foi alterado com relação a sua população; ora pouco mais, ora pouco menos, mas dentro dessa ordem de grandeza.
Naquela época, as casas não eram pequenas, especialmente porque os ambientes eram de dimensões generosas, e os terrenos proporcionais; os muros eram baixos entre vizinhos ou mesmo com relação à rua e muito raro era o uso de grades nas portas ou janelas.
O filósofo Mario Sérgio Cortella, numa de suas palestras descreveu através de um desenho tosco e explicação simples e clara, a sua casa, que de forma direta me lembrou da minha. Claro que pela pouca idade, da década de 50 não me lembro, mas do início da década de 60 já tenho lembranças claras.
As casas das famílias de classe média exibiam algumas características interessantes: normalmente eram casas em que havia ambientes bem definidos para cada função, as salas separadas por funções específicas, copa, cozinha, banheiro, normalmente um só para atendimento de toda a família, quartos, área de serviços normalmente no quintal, e, para quem não se lembra do que eram os quintais, eram as grandes porções do terreno que sobravam nos fundos dos lotes, onde normalmente se plantavam frutas, hortas, e outros usos da família.
Em minha casa, alguns dos ambientes eram os responsáveis pela maior interação familiar, que vou chamar de “criador de vínculos”. Entre eles, o banheiro era talvez um dos mais importantes, e aqui vou desde já esclarecer que não tenho nenhuma preferência por esse ambiente, e me refiro especificamente à criação de vínculos através das pequenas discussões pueris na questão da ordem de preferência de seu uso ou outros motivos de pouca ou nenhuma importância, e nesse aspecto, o ambiente em si era secundário, o importante eram as discussões.
Só para ilustrar, me lembro de que a cada vez que algum dos irmãos entrava e fechava a porta, outro batia para alertar de sua vez, com mais ou
menos desespero conforme fosse a urgência ou a simples necessidade de perturbar o outro.
No caso do banho as coisas ficavam um pouco mais sérias. As batidas insistentes na porta eram de minha tia, que minha mãe e os adultos chamavam de “solteirona” e que morava conosco.
O objetivo era invariavelmente de alertar sobre a idade da instalação elétrica e o risco de incêndio. O banheiro era assim, um dos locais em que a criação de vínculos entre irmãos era líquida e certa, embora algumas vezes sofrida.
A sala também era um “criador de vínculos”; assim como a cozinha, só que por motivos obviamente diferentes. Na cozinha pelas refeições servidas na mesa que chamávamos de “copa”, onde todos nos sentávamos invariavelmente nos cafés, almoços e jantares cotidianos; e na sala, onde também frequentávamos junto dos adultos após o jantar, para o que chamávamos de “lazer dos adultos”.
A sala de nossa casa, como as das casas dos amigos que frequentávamos, tinha um sofá e poltronas voltadas entre si, cristaleira onde se guardavam os copos de festas, e em casa, pelo que me lembro, eram de vidro bem fino com arabescos em fina linha dourada; um móvel para o rádio, e como nossa família era católica, outro móvel para a santa padroeira.
O “lazer dos adultos” consistia nas intermináveis e descontraídas conversas ou apenas em ouvir os programas de rádio ou radionovelas, que dentro de nossas limitações de maturidade, participávamos também.
O início da década de 60 trouxe a televisão à cidade. Em muitas noites, saíamos de casa para assistir como convidados na casa de um vizinho, e a família marchava completa. Hoje fico imaginando se não seria para desespero dos anfitriões que perdiam completamente a privacidade, mas ao fim, acho que isso era normal. As pessoas eram mais solidárias e, comprovei isso depois de algum tempo, quando a televisão chegou a minha casa e meus pais convidavam alguns de nossos vizinhos para assistir, como fôramos convidados antes.
Essa relação da família com a televisão trouxe algumas transformações nesse ambiente.
O móvel com a santa é mudado para o quarto dos meus pais, o rádio para a cozinha, e o sofá e as poltronas voltaram-se todos para a nova rainha do lar, a televisão, que no nosso caso era uma “Colorado”, outros vizinhos tinham “Telefunken”. O diminutivo carinhoso “TV” veio com o tempo.
As conversas de família ou entre amigos e vizinhos, passaram a ser resumidas aos intervalos da programação. Havia talvez, um acordo não verbalizado, onde o dono da casa ao término dos “reclames”, publicidade ou intervalos comerciais, voltavas seus olhos fixamente para a TV, e os
outros quase que imediatamente paravam a conversa e reinava apenas o som da TV. O silêncio entre os espectadores era quase absoluto.
O final da década de 60 e início da década de 70 trouxeram novos elementos da arquitetura na vida familiar; das outras famílias que eu já conhecia, porque em minha casa realmente não houve mudança. A comodidade de se fazer mais um banheiro na casa, normalmente no quarto do casal, passando a ser chamado de suíte.
Do arejamento cultural da década, os projetos das casas pegaram carona, e elas ficaram mais abertas, coloridas, e em algumas delas a TV passara a ganhar sala especial e as famílias já não almoçavam ou jantavam juntas com a mesma frequência; era muito comum que as crianças se distraíssem na frente da TV e esquecessem o almoço ou jantar, mesmo com as broncas dos pais.
Nesse momento, os lotes e as casas foram ficando menores, muito embora os muros continuassem baixos e não houvesse grades de segurança nas portas ou janelas; as grades existentes eram basicamente estéticas, produzidas por serralherias artísticas. Os custos passaram a ser mais bem controlados, em especial nas grandes cidades onde os valores de materiais e mão de obra foram ficando maiores.
As reduções de áreas dos lotes e dos imóveis continuaram avançando interminavelmente, na proporção inversa dos custos.
Tanto pelas áreas dos lotes quanto pelos custos de construção, ou mesmo pelas inovações de materiais, os projetos foram se tornando mais desafiadores e os arquitetos passaram a exibir a sua criatividade, com os imóveis e o mobiliário se adaptando aos novos tempos, proporcionais às pequenas áreas.
Ao final da década de 80, já era comum que vários ou todos os quartos das casas tivessem banheiros privativos, as suítes. Nos apartamentos isso demorou um pouco mais exatamente por conta dos custos agregados.
Durante muito tempo, já formado arquiteto e urbanista, eu relutei em adotar ou incentivar projetos que previam suítes para toda a casa. Eu imaginava que essas comodidades poderiam trazer consigo algum isolamento entre as pessoas, e por consequência, também uma certa dificuldade nos vínculos antes tão fáceis de criar. A partir da década de 90, as coisas se complicaram um pouco mais com os preços das TVs que ainda reinavam nas casas, muito mais acessíveis, e por consequência, também ela deixava as salas e se mudava para os quartos.
A partir daí, imaginei que as pessoas passariam a viver em mundos independentes dentro da mesma casa, mas para meu espanto, ainda no final da década de 90, outro item entrava em casa indo direto para os quartos, os computadores pessoais e já funcionando de forma mais ou menos precária, a internet.
Outra revolução estava para acontecer nesse momento, os celulares quase restritos para ligações telefônicas em substituição aos telefones fixos, caros e considerados um investimento à época.
Os anos 2000, foram os dos PCs, notebooks, tablets, e certamente o mais importante, os telefones celulares agora na forma de smartfones ligados à internet, substituindo todos os outros equipamentos.
Claro que a altura, eu já nem pensava mais naquela história de quartos com banheiros privativos separando as pessoas dentro de casa, isso havia ficado no século anterior!!!
O isolamento das pessoas dentro de um mesmo imóvel foi o grande vilão dessa época. As conversas escassearam, os jantares em família e as reuniões para assistir um filme ou programa de TV simplesmente foram se extinguindo. As exigências do trabalho, estudos, as facilidades da internet, entre outros fatores, restringiram ainda mais as interações familiares, a partir das dificuldades de agenda e horários e a arquitetura das moradias de alguma forma acompanhou esse movimento.
Os imóveis foram ficando menores, os muros mais altos, as grades deixaram de ser um elemento estético e passaram a ser itens de segurança. É bastante possível afirmar que os imóveis atuais com as mesmas dependências de imóveis daquela época, apresentem áreas 40% menores que aqueles oferecidos há 30 anos.
Apesar de o tamanho facilitar o encontro, o uso dos equipamentos apontaram para o sentido inverso, o do isolamento quase total e sua substituição pelo relacionamento virtual. As redes sociais colaboraram muito nesse aspecto, com as relações se liquefazendo e a arquitetura em certa medida acompanhando esse movimento, e é bastante possível que voltemos a frequentar em família a mesma sala numa casa-container, mas provavelmente, todos no seu smartfone acrescidos dos amigos virtuais. Como diz minha filha, “NORMAL”!